O acesso a medicamentos contra o cancro é muito desigual em toda a Europa, tanto no que diz respeito aos novos medicamentos em desenvolvimento, como em relação aos medicamentos atualmente aprovados, revelam os resultados dos estudos apresentados no congresso da Sociedade Europeia de Oncologia Médica (ESMO 2020). Um acesso desigual com impacto nos doentes.
Os países da Europa Ocidental realizam um número maior de ensaios clínicos para novos tratamentos do cancro do que os países da Europa Central e Oriental, revela uma análise de ensaios clínicos ativos em diferentes países, que apresentou grandes diferenças no acesso a novos tratamentos em desenvolvimento para os doentes, dependendo da região onde moram.
“O nosso estudo prova o que suspeitávamos anteriormente, que há uma enorme assimetria no número de ensaios clínicos para tratamentos de cancro em diferentes países”, afirma Teresa Amaral, coautora do estudo e especialista do University Hospital Tubingen, na Alemanha.
“Ter acesso a ensaios clínicos confere vários benefícios aos doentes com cancro”, acrescenta. “Isso significa que podem potencialmente aceder a novas terapias mais cedo durante a fase de teste, em vez de ter que esperar pela aprovação e comparticipação.”
“Além disso, todos os participantes beneficiam do acompanhamento e monitorização regulares associados à participação num ensaio clínico.”
Mais ensaios clínicos
Os investigadores procuraram ensaios clínicos de intervenção em adultos com tumores, no banco de dados Clinicaltrials.gov, entre 2009 e 2019. A análise, que incluiu 34 países europeus, revelou diferenças enormes.
A Albânia, por exemplo, teve o menor número de ensaios clínicos ativos para cancro (0,14 ensaios clínicos por 100.000 habitantes), enquanto a Bélgica apresentou o maior número (11,06 por 100.000).
Outros resultados revelam que o número total de ensaios clínicos de oncologia realizados em países europeus aumentou 33% entre 2010 e 2018, com um aumento muito maior nos ensaios de fase inicial (aumento de 61% nos ensaios de fase I-II) do que nos ensaios de fase tardia (aumento de 7% nos ensaios de fase 2-3), o que, segundo Teresa Amaral, pode ter a ver com uma mudança no desenho do ensaio clínico.
“Um número maior de ensaios de fase I é um sinal de que estão a ser realizadas investigações mais ativas num determinado país, com a infraestrutura adequada e os incentivos necessários para conduzir ensaios clínicos”, considera Thomas Cerny, professor de oncologia médica da Universidade de Berna, na Suíça e membro da ESMO. “E a única forma de desenvolver novos medicamentos contra o cancro é colocar os doentes em ensaios clínicos”, reforça.
“A diferença no número de ensaios clínicos per capita da população, com mais ensaios em países mais ricos, significa que o acesso a ensaios clínicos e medicamentos inovadores simplesmente não é possível para os doentes com cancro que vivem em muitos países menos ricos.”
O especialista acrescenta ainda que “os ensaios clínicos requerem uma infraestrutura sólida em termos de pessoal e equipamento, e isso depende da situação financeira geral do país. Esses requisitos estão a aumentar, o que significa que a lacuna na capacidade dos ensaios clínicos não deve diminuir em breve”.
“Ainda há muito a fazer para aumentar o acesso aos ensaios clínicos para para os doentes com cancro em diferentes países”, concorda Teresa Amaral. “O procedimento de harmonização voluntária, no qual os patrocinadores dos estudos podem enviar a documentação dos estudos a vários países ao mesmo tempo, simplificou o processo e reduziu o tempo de aprovação dos mesmos. Mas é necessário mais para aumentar o acesso aos ensaios clínicos em países onde o número de ensaios é atualmente baixo.”
Acesso desigual associado a força económica do país
Um outro estudo, este uma análise económica da saúde, também divulgada no congresso da ESMO, mostrou que os países europeus mais ricos gastaram dez vezes mais, por habitante, do que os países mais pobres em medicamentos contra o cancro em 2018, seguindo um padrão semelhante ao observado para os ensaios clínicos.
“Houve uma enorme diferença nos gastos com medicamentos contra o cancro”, refere o autor principal, Nils Wilking, do Karolinska Instituet, na Suécia.
“Descobrimos que as desigualdades estão principalmente relacionadas com a força económica dos países e não ao ónus do cancro.”
Os investigadores estimaram gastos com saúde específicos para o cancro em em 31 países (UE-27 mais Islândia, Noruega, Suíça e Reino Unido) usando números nacionais de 2018.
Os resultados mostraram que os que gastaram mais em medicamentos contra o cancro foram a Áustria, Alemanha e Suíça (90 a 108 € per capita), enquanto os que gastaram menos foram a República Checa, a Letónia e a Polónia (de 13 a 16 €). As maiores diferenças nos gastos entre os países foram observadas com medicamentos imuno-oncológicos, onde se acentua o acesso desigual.
“Existem dois fatores principais responsáveis pelas diferenças nos gastos com medicamentos contra o cancro: um é a falta de dinheiro e o outro são os medicamentos que não estão a ser aprovados para uso por alguns sistemas de saúde”, sugere Wilking.
“Precisamos de um modelo no qual incentivemos a inovação de medicamentos valiosos através de modelos de pagamento baseados em resultados e consideremos uma área de doença e o que a sociedade pode pagar pelo tratamento”, sugere.