
Uma investigação desenvolvida por uma equipa multidisciplinar da Universidade de Coimbra (UC) e da Unidade Local de Saúde de Coimbra (ULS Coimbra) mostra o impacto real da terapia génica ao nível do cérebro de doentes com um tipo de distrofia hereditária da retina, associada a perda grave de visão bilateral.
Neste estudo foi investigada a resposta do cérebro a estímulos visuais por parte de pessoas que receberam um tratamento inovador, de terapia génica, um tipo tratamento que visa substituir um gene que não está a funcionar corretamente, para a distrofia retiniana hereditária associada ao gene RPE65.
No caso concreto deste tratamento (denominado voretigene neparvovec), é administrado sob a retina dos doentes, após uma cirurgia intraocular (designada vitrectomia). Os seus efeitos benéficos ao nível da função visual dos doentes tratados estavam já amplamente documentados, mas as equipas da UC e da ULS Coimbra foram mais longe, conseguindo não só comprovar a sua eficácia, mas também identificar mudanças nas áreas do córtex cerebral associadas à visão após o tratamento.
No artigo publicado na revista Communications Medicine, do grupo Nature, os cientistas apresentam com detalhe o processo de melhoria apresentado pelos participantes no estudo.
Resultados positivos da terapia génica
O gene RPE65 desempenha um papel essencial na visão. Os doentes afetados por distrofia retiniana associada a este gene apresentam uma grande limitação da visão central, cegueira noturna e perda de visão lateral.
Todos os doentes que participaram neste estudo foram avaliados antes e um ano após o tratamento, com exames imagiológicos da retina e testes de função visual, usando estímulos com diferentes níveis de luminosidade e contraste, e também através de ressonância magnética funcional. Nesta análise, foi possível verificar melhorias específicas na sensibilidade à luz em ambientes de baixa luminosidade.
Surpreendentemente, a melhoria que os cientistas conseguiram detetar “não depende apenas das células da retina que foram intervencionadas com terapia génica, mas também da capacidade de o cérebro reagir à intervenção”, explica o docente da Faculdade de Medicina da UC (FMUC) e diretor do Centro de Imagem Biomédica e Investigação Translacional do Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde, Miguel Castelo-Branco.
Isto significa que “as regiões do hemisfério direito do cérebro, que dominam na função visual, foram aquelas que mostraram melhor resposta à intervenção”, acrescenta o também autor sénior deste estudo.
Além de mostrar os resultados positivos da terapia génica para o tratamento desta doença associada ao gene RPE65, os resultados sugerem ainda que “as abordagens de reabilitação, incluindo o treino da função visual, são importantes para direcionar o cérebro para melhor responder à terapia génica”, avança o neurocientista.
“Há evidência crescente da necessidade de «reeducar» os circuitos cerebrais mesmo nos casos em que a terapia é dirigida para órgãos dos sentidos, como acontece na audição, com os implantes cocleares e o posterior processo de reeducação auditiva, que implica profissionais como os terapeutas da fala”, destaca.
A integração da equipa de investigação da ULS Coimbra no consórcio ERN-EYE, uma rede europeia de referência dedicada às doenças oculares raras, que reúne 24 países da União Europeia, foi também importante para o desenvolvimento deste estudo. Esta rede visa garantir um melhor conhecimento e acompanhamento das mais de 900 doenças oculares raras atualmente identificadas, que são a principal causa de deficiência visual e cegueira em crianças e jovens adultos na Europa.