Mais de metade dos médicos dentistas portugueses a trabalhar no estrangeiro decidiram emigrar já depois de exercer a profissão em Portugal. Cerca de um terço não esperou mais de seis meses, um valor que quase duplica quando a decisão é tomada até dois anos, revelam os dados do estudo ‘Diagnóstico à Profissão de Médico Dentista 2022’, que traça um retrato preocupante da precaridade existente na medicina dentária.
Rendimento insuficiente e instável, desvalorização da carreira e ausência de contrato de trabalho são as principais razões apontadas por quem desistiu das condições existentes no País. E, destes, mais de metade não pretende voltar a trabalhar em Portugal.
“O mercado de trabalho nacional está cada vez mais saturado, o que provoca uma progressiva precarização e desvalorização da profissão e o aumento dos fluxos migratórios para exercício da profissão em outros países, nomeadamente dos mais jovens”, alerta Miguel Pavão, bastonário da Ordem dos Médicos Dentista (OMD), sublinhando a importância “de se conhecer ao detalhe as razões para estes profissionais escolherem trabalhar no estrangeiro em detrimento de Portugal”.
Condições ‘empurram’ para emigração
Em 2022, dos 3.438 médicos dentistas que responderam ao inquérito, 6,6% indicaram que exerciam a profissão no estrangeiro. Destes, 56,2% emigraram já depois de trabalhar em Portugal. Mais de um terço (35,7%) decidiu abandonar o País ao fim de seis meses de trabalho como dentista, decisão que, quando é tomada em menos de dois anos, faz com que o valor dispare para 56,7%.
O número de emigrados é, certamente, superior, considerando as conclusões do relatório ‘Números da Ordem 2022’. A 31 de dezembro de 2021, 12,9% do total dos médicos dentistas eram membros com inscrição suspensa na OMD. A principal razão para isto acontecer é, precisamente, o exercício no estrangeiro (67%).
As razões pelas quais desistiram de exercer medicina dentária no País também não deixam margem para dúvidas: 58,9 % diz que não conseguia ter um rendimento satisfatório em Portugal e também que a profissão não é valorizada; 49,3 % não conseguia ter um salário estável; 32,4 % não conseguia um contrato de trabalho.
Para onde vão: o destino dos dentistas
Quando chegam ao estrangeiro – o top 3 é liderado pela França (36,5%), seguindo-se Reino Unido (12,8%) e Suíça (8,2%) -, as condições encontradas contrastam com as que deixaram para trás. Os dados apurados permitem concluir que no estrangeiro 51% têm um rendimento mensal bruto acima dos 3.000 euros. Em Portugal, este valor fica-se pelos 11,9%. Também no estrangeiro, apenas 0,6% dos auferem menos de 1.000€, quando em Portugal esta percentagem aumenta para 7,3%.
Em termos de horário de trabalho, verifica-se que em Portugal quase metade dos médicos dentistas trabalham mais do que cinco dias por semana, ao contrário do que se verifica no estrangeiro. É, por isso, sintomático o valor (53,4%) de quem não quer voltar a exercer em Portugal.
“Portugal necessita de parar, pensar e decidir se queremos continuar a desperdiçar talento. Todos nós, que temos responsabilidade na formação das próximas gerações, temos de responder: investimos na formação de profissionais de excelência para quê e para quem? Para os exportar? Estas perguntas aplicam-se tanto no ensino da medicina dentária como em outras áreas”, defende Miguel Pavão.
O estudo mostra ainda que a maioria dos médicos dentistas (60,9%) trabalha em clínicas ou consultórios de outrem. Dos profissionais que exercem no setor privado, 61,1% dos médicos dentistas apresentam rendimentos mensais variáveis (em 91,6% dos casos varia em função de uma percentagem dos tratamentos realizados).
Conclui-se também que apenas 3,7% exerciam a sua atividade num hospital ou centro de saúde do setor público ou social. Destes, quase metade (49,5%) diziam estar a recibos verdes, contratados diretamente pelas Administrações Regionais de Saúde (27,4%) ou através de empresas intermediárias (22,1%), e menos de um terço dos médicos (29,2%) estavam integrados como Técnicos Superiores do Regime Geral.
“Há sinais positivos de se querer melhorar alguma coisa no que diz respeito à saúde oral no SNS. A rede de consultórios nos centros de saúde, mas também a criação da carreira são disso exemplos. Só não podemos acrescentar precaridade àquela que já existe”, afirma Miguel Pavão, reforçando: “Sem a carreira no SNS e sem uma revisão profunda ao atual regime de contratação destes profissionais, não vamos ter condições para fixar os médicos dentistas que, assim, vão continuar à procura de reconhecimento e estabilidade no estrangeiro”.
Acesso ao mercado em Portugal
Ao analisar o intervalo de tempo entre o final do curso e o início da atividade profissional, percebemos a dificuldade crescente de entrar no mercado de trabalho de medicina dentária. Entre quem se formou há mais de 10 anos, 94,1% conseguiu começar a trabalhar em menos de seis meses após a conclusão do curso. Este valor cai 11,9 pontos percentuais quando comparamos com quem terminou o curso há menos de 10 anos. Esta queda é tão ou mais evidente se olharmos só para quem conseguia emprego em menos de um mês, respetivamente, 27,4% Vs 7,4%.
“Ainda somos uma profissão de entrada rápida no mercado de trabalho, mas isto só acontece à custa do subemprego, do aumento da precariedade profissional, da dificuldade de ter um contrato de trabalho e de não haver uma carreira no SNS. Tudo condições que levam os jovens a emigrar”, explica Miguel Pavão.
Numa escala de 1 a 10, a satisfação com a situação profissional é avaliada em 5,87 e apenas 14% aparentam estar muito satisfeitos. Quando questionados, mais de um quarto dos médicos dentistas (26, 9%) são perentórios a referir que se fosse hoje não escolheriam fazer a mesma formação.
“Quem estuda medicina dentária sabe que não ver muitas alternativas a ser médico dentista. Não é por acaso que 96% exerce na vertente clínica. É o que chamamos de profissão de banda estreita, com poucos saídas profissionais”, acrescenta.
As preocupações dos médicos dentistas englobam diferentes vertentes. O facto de a medicina dentária não ser reconhecida como uma profissão de desgaste rápido é a mais referida (63,4%), o crescimento dos seguros e planos de saúde (58%) e os custos tributários e de licenciamento (taxas) associados à manutenção das clínicas (55,5%) foram frequentemente apontados.