Uma equipa de investigação nacional testou um programa de treino cognitivo computorizado, composto por atividades cognitivas e motoras, em doentes psiquiátricos crónicos (com, por exemplo, quadros clínicos psiquiátricos de esquizofrenia, perturbação depressiva e bipolar) que residem em unidades de longo internamento.
Coordenado pelo Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental (CINEICC) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e pelo NeuroRehabLab da Universidade da Madeira, este treino cognitivo computorizado revelou ter impactos positivos em indicadores cognitivos nos doentes psiquiátricos, tais como velocidade de processamento, atenção sustentada por curtos períodos de tempo e memória verbal, como também em indicadores não cognitivos, como diminuição da sintomatologia depressiva.
Com este estudo, a equipa procurou “avaliar a viabilidade e a aceitabilidade do programa, assim como analisar o seu impacto em indicadores cognitivos (por exemplo, atenção, memória, funções executivas) e não cognitivos (como qualidade de vida, capacidade funcional e estado emocional)”, contextualiza Joana Câmara, investigadora do CINEICC e primeira autora do estudo.
“Até à data, são ainda escassos os estudos científicos que avaliam o impacto de intervenções combinadas com enfoque funcional em doentes psiquiátricos, sendo este um tema inovador no processo de intervenção terapêutica nestes quadros clínicos”, refere a investigadora.
Segundo o Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental, “mais de um quinto dos portugueses (22.9%) apresenta uma patologia psiquiátrica, número que seguramente tem vindo a crescer desde a pandemia”, afirma Joana Câmara.
Paralelamente, “a literatura científica revela que os doentes psiquiátricos apresentam défices cognitivos persistentes que comprometem a sua adesão à terapêutica, a qualidade de vida e a capacidade funcional e, por essa razão, esta população tende a ser mais sedentária do que a população em geral, sendo mais suscetível de desenvolver doenças cardiovasculares e metabólicas que agravam a sua condição clínica e que afetam o seu funcionamento cognitivo”, acrescenta.
Neste sentido, a implementação de intervenções junto desta população, especialmente as que combinam componentes cognitivas e motoras, “pode ajudar a fazer frente às consequências negativas previamente mencionadas e tem ainda a vantagem de ser mais viável num contexto de internamento psiquiátrico, onde os recursos humanos e o tempo para intervir são limitados”.
Tarefas para os doentes psiquiátricos
Foram realizadas 14 sessões, de 30 minutos cada, administradas três vezes por semana, a 18 participantes. Uma parte do grupo frequentou o programa em formato de intervenção combinada (mais dinâmico), no qual o conteúdo do treino cognitivo foi projetado numa parede com os participantes a resolverem tarefas através da realização de movimentos detetados por um sensor de movimentos. O restante grupo frequentou o programa de treino considerado mais passivo, em que os participantes resolveram as tarefas de treino cognitivo num tablet.
As sessões do programa foram organizadas por temáticas funcionais distintas, com o objetivo de aproximar as tarefas de treino cognitivo a ações que as pessoas têm de realizar na vida real, com o objetivo de treinar competências funcionais e promover o envolvimento e motivação (da comunicação funcional, uso de transportes públicos, confeção de refeições, ida às compras, gestão financeira, até à gestão de questões relacionadas com a saúde).
Depois da participação nas 14 sessões do programa, as os doentes psiquiátricos foram acompanhadas no momento pós-intervenção e também passados três meses. No acompanhamento após as sessões, foi possível atestar a “viabilidade e aceitabilidade do programa, bem como níveis elevados de satisfação na sequência da intervenção”, explica Joana Câmara.
O grupo de doentes psiquiátricos que frequentou a intervenção combinada “apresentou níveis de satisfação ligeiramente mais elevados, possivelmente pelo facto de esta implicar uma interação mais dinâmica e multissensorial, apresentando melhorias significativas em indicadores cognitivos, tais como velocidade de processamento, atenção sustentada por curtos períodos de tempo e memória verbal, e em indicadores não cognitivos, como diminuição da sintomatologia depressiva”, destaca a estudante de doutoramento da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.
No caso do grupo que frequentou as sessões com recurso ao uso de tablet, “evidenciaram ganhos significativos, mas apenas em indicadores cognitivos, incluindo a atenção sustentada por longos períodos de tempo, a memória verbal e as funções executivas”.
No acompanhamento que decorreu três meses depois, “os participantes de ambos os grupos foram reavaliados e verificou-se que o primeiro grupo manteve os ganhos obtidos na memória verbal, bem como a diminuição na sintomatologia depressiva”, destaca.
Melhorar os indicadores
Sobre os impactos deste estudo-piloto, a investigadora do CINEICC refere que “futuramente, seria importante replicá-lo com uma amostra mais alargada, que incluísse doentes psiquiátricos de ambos os sexos, por forma a clarificar qual destas abordagens/formatos de implementação é mais eficaz”.
Relativamente aos benefícios das intervenções combinadas com enfoque na componente funcional, Joana Câmara adianta que “a investigação científica em grupos saudáveis sugere que as intervenções que contemplam diferentes abordagens de atuação – entre elas o treino cognitivo, a atividade física, a nutrição e o acompanhamento psicológico – são mais eficazes na promoção de indicadores cognitivos, físicos, funcionais e de bem-estar do que todas estas intervenções adotadas isoladamente. Neste sentido, urge desenvolver e avaliar a eficácia deste tipo de intervenções em populações clínicas com necessidades de intervenção complexas, como é o caso da psiquiátrica, e procurar transpô-las do domínio da investigação para a prática clínica”.